quarta-feira, 31 de março de 2010

Gainsbourg onírica

- Moça, rápido! Preciso de uma beca... A formatura já está começando.
- Pois bem. Qual seu tamanho?
- Não interessa. Olha lá, eles já estão entrando!
- Tudo bem. Tome esta!
- Quanto custa?
- São 42 reais.
- 42? Tem um livro que diz que 42 é o grande segredo da vida.
- Como?
- Deixa pra lá. Tome 100. Pego o troco com você depois.

Esse foi meu último diálogo com a atriz Charlotte Gainsbourg (Anticristo), que em um sonho meu se transformava em vendedora de becas. No fim do sonho, vi que todos estavam de verde. A minha roupa, porém, era de um amarelo que reluzia, reluzia...

terça-feira, 9 de março de 2010

Sem sair da linha



Na correria, sempre. Era como o ambulante Alisson respondia aos rotineiros cumprimentos dos transeuntes que passavam pela avenida. Na correria, lidava com as também cotidianas e pouco pacíficas abordagem de fiscais do município, que, dizia, às vezes decidiam dar presente pra família inteira e tomavam a mercadoria dos camelôs honestos. Dessa vez, sua velocidade não havia sido suficiente. Violação de direitos autorais, tudo em flagrante, recolhido e documentado.

Subemprego era uma saída imprópria, mas necessária. De procedimento conciso e emoções ligeiras, não tinha tempo de analisar a própria conduta. Nas poucas tentativas, a pensão alimentícia de suas duas crianças começou a atrasar. Portanto, entre o risco de ser preso por não sustentar os filhos e o de ser preso tentando, escolheu a segunda opção. De segunda a sábado, ele berrava a tabela de preços de CDs e DVDs. Não gostava de filmes. A visão apenas parcial impedia uma concentração maior em histórias demasiadamente ausentes de sua realidade. Quanto a isso, era intransigente: ficção era pra gente rica.

Em suas orações dominicais, Cassandra, a empresária, clamava por misericórdia ao Senhor, para que nunca lhe faltasse pão e proteção divina. Em seu megaempreendimento, o movimento de pessoas de todas as formas, pesos e cores, dava-se sem grandes tumultos. Distintas senhoras desfilavam suas elegantes echarpes e afeição pela vida. Naquela tarde, algumas delas, em vão, torceram o nariz para a entrada em massa de policiais federais na butique. Em alguns minutos, todos os funcionários estavam dispostos em fila para apresentação de documentos pessoais e a assinatura de um acordo de cooperação. O temperamento explosivo de Cassandra com subalternos garantiu à polícia uma colaboração um pouco mais estreita. Em poucos dias, o relatório estava pronto. Seis descaminhos consumados, três descaminhos tentados e nove falsidades ideológicas, além de formação de quadrilha. Aguardava em liberdade o término do processo.

Em sua longínqua parte de país, enquanto aguardava julgamento de recurso, Alisson prosseguia em sua rotina de trabalho. Não fazia qualquer menção ao caso da milionária golpista, embora a situação, ridícula como fosse, inquietasse-lhe a alma. Precisava de pouco para ser feliz, sim. Talvez fosse mais feliz com um pouco mais. Talvez, não: certamente, concluiu. Com o tempo, foi travando uma relação íntima com a mulher que rendia tantas manchetes aos noticiários do país. Queria explicar aquilo, não por se compadecer da iminente condenação daquela, mas por temer que, em um futuro não muito distante, comparassem a sua atividade à dela. Era diferente. Gritantemente diferente, sabia. Só se perdia na justificativa. Dizer que um precisava e outro não, era simplório demais.

Na manhã em que ambas as sentenças foram dadas, ela se despediu da porcelana húngara, dos quadros do século XVIII, e deu ordens expressas para que suas almofadas exclusivas fossem lavadas a seco. Sabia o que a esperava. A mesma intuição feminina que havia falhado quando pensou nunca ser pega agora dava sinais de eficiência. Quase um século inteiro em regime fechado era a soma das condenações. Saiu do tribunal austera como de costume. A garganta engoliu em seco. Seus advogados teriam agora a missão de criar mais uma instância no processo.

Ele havia deixado de abrir a banca para comparecer à Câmara Criminal. Diferente dela, não tinha ideia daquilo que o esperava. Ouviu um longo discurso sobre lesão de direitos, ponderações sobre auto-sobrevivência e licitude. Sabia que se dissessem “apelante” significava que estavam falando dele e que, se mencionassem o termo “estado de absoluta necessidade”, estaria mais perto da absolvição. Assim, ocorreu. Riu-se da situação quando soube que a madame iria para a reclusão. Contou a própria anedota para todos os conhecidos, acrescentando a história alheia à sua narrativa, como se a nova presidiária tivesse conhecimento do que se passara com o camelô e estivesse revoltada por ele estar livre. Justiça nesse país está começando a se tornar verdade, discursou. Alguém lembrou que, mesmo na remota possibilidade de cumprir a pena inteira em regime fechado, ela teria uma vida de mordomias que ele jamais alcançaria com suas mídias piratas. Só então se dera conta. No fundo, ele era um cidadão conformado com as mazelas do mundo. Mas, na superfície, uma revolução nascia sobre si.

(Crônica publicada originalmente no Jornal Samambaia/UFG)