domingo, 27 de fevereiro de 2011

Pequenas esperanças

A pequena se foi. Não fez as malas, nem avisou que iria. A um descuido, a bolinha de pêlos e unhas afiadas ganhou as ruas da cidade. Rumou ao desconhecido, como se dissesse "já estou crescida e fui viver". No dia seguinte, foi a vez de seu irmãozinho. Idênticos em seu corpanzil fofo, exceto por uma mancha branca quase imperceptível na patinha de um, eram diametralmente opostos em graciosidade. Ela, amiga dos colos da família, exigia afagos intermináveis. Ele, único macho da prole felina, fazia as vezes de dominante. Embora não fosse dado a passar de mão em mão, tinha seus momentos de doçura e, quando entortava a cabecinha e miava profundamente olhando nos olhos, fazia qualquer um acreditar que dois universos inteiros caberiam em suas bolinhas de mel brilhante. Partiram com poucas horas de diferença. Como era da natureza do menino, não hesitou diante do automóvel, que, impassivo, esvaiou a curta vidinha em uma manobra qualquer.

Partiram sem nos dar chance de consertar o destino. Deixaram a casa enorme, quase sem móveis. Restaram as paredes escuras e a sensação de eco, mesmo no silêncio de uma família com mil nós na garganta. O homenzarrão de 50 anos, remanescente daquele paternalismo rural dado à apatia, escondeu-se em um canto para chorar em privado. As lágrimas da mãe, líquidas e sonoras, amplificaram-se dali até o extremo do mundo. O filho, sujeito pouco espiritualizado, rogou para que Deus levasse aquela alma exigente para o céu de gatinhos, onde, como de praxe, o pequeno poderia emitir seus miados olhando nos olhos de Pai, Filho e Espírito Santo sem ser convidado.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011



Well, I'd never want to see you unhappy
I thought you'd want the same for me

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Neste tema em que me prolongo

Meu pequeno senhor,

Venho por meio dessas singelas palavras,
que, embora pareçam, não têm qualquer tom jocoso,
intenção ambígua,
ou excesso de zelo,
agradecê-lo por tirar-me o sono.

Desde que o escuro começou a reverberar sua presença,
ando a me pegar num êxtase tão complexo
que não raro meu corpo expande
os limites do leito desarrumado.

Hesito em expelí-lo em meus lençois,
certo de que não haverá frestas adequadas para arrancá-lo de vez.
Será necessário parí-lo?
E onde te cultivaram?
Quando plantaram você em mim?
Ou terá sido geração espontânea? 
À medida em que cresço
- para suportar a agonia dos dias perdidos -,
extende-se também o desespero pela sensação de olhá-lo por cima.

Entretanto, muito entretanto,
Não tenho queda para King Kong, senhor
Apesar dos métodos primatas
E da natureza de cobertor em que me transfiguro a cada abraço.

Se é necessário ser diminuto para cabermos em nós,
diga a quem interessar possa
- respeitosamente, senhor -
que está resolvido.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Certa manhã, Franz Kafka acordou de sonhos intranquilos e decidiu que era hora de limpar as mãos sujas de graxa, sêmen e poesia. Sentiu o peso de cada dedo, buscando a confirmação visual de que precisava. Concluiu que, sim, aquelas eram mãos legitimamente humanas. Ainda buscando evidências de se tratar de algo próximo a um sapiens de fato, levou os recém-descobertos dedos ao rosto. Fechou os olhos e sentiu que estava tudo bem por trás das pálpebras trêmulas.

Certificou-se de ter um esqueleto calcificado, firme e interno. Penteou os cabelos com algum prazer e sentiu o gosto levemente ácido do creme dental. Deu bom-dia aos pais e à irmã, que havia se transformado em uma linda mulher.

Rumo à estação, ao pisar acidentalmente em algo crocante, entendeu que tinha superado o medo de barata.
Mas o amor, esse sim, continuava a lhe dar arrepios.




Thalma de Freitas - Não foi em vão (a capella)