quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Não fale em despedidas, Patrícia (ou Um Bilhete em Pedaços)



Ela não sabe, nem poderia. Eu mesmo acabei me esquecendo, e o fato seria enviado, sem bilhete de volta, ao lugar que chamam mar do esquecimento. Mas, então, suas palavras me chegam de súbito, não como um tapa, mas como uma brisa em uma noite de calor. Vejo-me em seu escritório, um lugar de passagem - felizmente, apenas no sentido físico, pois o lugar é quem o faz e ela é e um dos seres humanos menos passageiros que já conheci. Alguém chama e a demanda o atendimento a uma solicitação que, quis a ventura, só ela é capaz de cumprí-la. E lá vai, pedindo que eu esperasse rapidinho, por só cinco minutinhos, que já estava voltando. Como se estivesse esperando apenas o meu silêncio para irromper, o fantasma da despedida soma uma lágrima em meus olhos.

Se eu deixá-la agora mesmo, penso, evito uma dor iminente. Enquanto uns passam correndo, certamente sem se dar conta do aperto em meu peito, pego um bloco de papel e começo a ensaiar uma despedida sem resposta, mais saudável para todos e talvez mais expressiva do que meus abraços desajeitados:

Patrícia,
Nós não vamos parar por aqui. Para evitar qualquer dissidência entre nós, combinemos de imaginar (com força, é preciso acreditar na brincadeira!) que apenas fui transferido para um lugar na próxima esquina. Sei que você não tem vista para a rua, mas às vezes te acenarei de lá. Não é longe. São apenas alguns metros e os benefícios são muitos: como se trata de um prédio de esquina, meu ângulo visual praticamente dobra; terei uma janela só pra mim e não precisarei ouvir as constantes queixas da vizinha de porta sobre o volume da minha voz - ela costuma falar ainda mais alto, mas é incapaz de perceber a própria estridência. Estranho, não? Mesmo assim...

Seus cinco minutos acabam antes que eu finalize o bilhete. Com as mesmas mãos que escrevia, rasgava-o e atirava na lixeira. Não me lembro bem dos momentos seguintes, só sei que quando a hora chegou meus dedos grandes não conseguiram declarar a mesma singeleza que deveriam. Assim como o resto do corpo, já sentiam falta daquilo que sequer chegou a existir, como assuntos perdidos, aos  quais chegávamos sem coerência alguma e dos quais nos livrávamos instantaneamente, graças a nossa velocidade de raciocínio. Os dedos acompanharam quando o corpo decidiu levantar-se e dizer "obrigado por tudo, Patrícia" - como se fosse preciso fazê-lo.

Cruzava a porta de vidro, andar após andar, querendo me arrepender do último abraço e debandar das próximas despedias. Nesse dia, ainda havia sol quando atravessei a rua na direção do meu "novo escritório de esquina". Os maiores raios vinham, estranhamente, da antiga casa e tenho a impressão de que isso foi um prenúncio.
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Não vou agradecer a Deus por você, não é hora. Não deseje-me sucesso na carreira, saúde para a família, casa bonita e boa mesa, porque isso é característico de um adeus. E, não, não venha me expulsar da sua vida com esse carinho todo. Trate-me com a casualidade fugaz de um mero partidário e, no íntimo, me ame como sempre nos amamos. Nossa felicidade é assim como nós: sem nenhuma compostura clássica e nada definitiva.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Violência em monocromia

A FITA BRANCA (Haneke, 2009) -
Mais que fruto de uma inspiração diabólica, a brutalidade é gerada, antes de tudo, através da submissão à truculência alheia. É desta visão que Michael Haneke bebe em seu filme Das Weisse Band (A Fita Branca). Dirigido sensivelmente pelo austríaco, o filme retrata as tensas condutas familiares como elemento fundamental para o estabelecimento de opressões maiores - nesse caso, o nazismo e todos os procedimentos decorrentes dele.

A fita branca do título representa, nas palavras do pastor local, uma evocação à pureza. O religioso ata tiras brancas em dois filhos para que, ao ficarem à beira do pecado, lembrem-se dos valores com que severamente os doutrinou. Aos menores desvios (leia-se: andar pelo vilarejo sem autorização, masturbar-se ou fazer algazarra em sala de aula), são castigados. Logo, a fita acaba assumindo um caráter cada vez mais obscuro. A opção pelo preto-e-branco serve, aliás, de metáfora para a contraposição de pesos e medidas, além de dar qualidade poética ao filme.

Edição crua, cenas longas e tensas, ausência de trilha sonora e atuações infantis impressionantes dão textura ao filme, narrado pelo professor do vilarejo. O homem passa longe de ser o protagonista da história, já que vive feliz e ignorante à revelia do que acontece ao redor. A escolha do narrador, porém, permite maior identificação com o espectador, em virtude de sua isenção nos fatos. Como nós, ele tem, a princípio, grande dificuldade em elaborar a sutileza dos ataques que ocorrem pouco a pouco. Vale ver e rever!

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O cotidiano brutal em Preciosa



Um diamante tem sempre seu valor. No filme Preciosa (Lee Daniels, 2009), ele tem 17 anos, pesa 150 kg, é negro, pobre, espera o segundo filho, fruto dos abusos que sofreu do pai, e atende pelo nome de Claireece Precious Jones. Como se tragédia pouca fosse bobagem, Precious vive com a mãe, uma mulher cuja propensão à violência fica evidenciada pela constante tortura psicológica à qual submete a filha. A situação ainda seria passível de reviravolta não fosse o diagnóstico: a garota, que nunca tivera namorado, contraíra do pai o vírus da AIDS.

Até este ponto, o drama deve parecer ao leitor um grande imbróglio de situações deprimentes, que inviabilizariam quaisquer possibilidades poéticas. Não é isso, porém que Preciosa, oferecerá ao seu espectador. O estreante Lee Daniels tem uma deslumbrante elucidação visual e dramática do enredo - bem maior do que este blogueiro e sua sinopse. A cada baque, Precious dá a impressão de estar anestesiada, não por obstinação, mas pela mera capacidade de se adaptar à realidade que se impõe sem pedir licença. Ainda assim, existe espaço para memoráveis momentos de respiração no roteiro, e precedentes para um (pasmem!) final feliz - feliz, mas não mirabolante e inverossímil. Reviravolta, sim.

O gosto de deja vú em Preciosa não é fruto do acaso. Quem já assistiu ao sensível A Cor Púrpura (Spielberg, 1985), reconhecerá ali a mesma tríade racismo-abuso-solidão. A referência, entretanto, é apenas inicial, já que o filme busca novas perspectivas de um problema antigo. Uma das grandes razões para assistir ao filme é a interpretação visceral da desconhecida Mo'nique, no papel da mãe de Precious. A tensão vai ao limite na cena em que, durante uma reunião com a assistente social, a personagem se vê obrigada a explicar a razão dos maus tratos - e, invariavelmente, reconhece a tortura a ela imputada também.

É preciso levar em conta que a emoção do filme fica, vez ou outra, comprometida pelos excessos do texto. Em dado momento, Precious insiste em ilustrar a própria depressão: - Às vezes eu desejo que não estivesse viva. Mas eu não sei como morrer. Não há nenhum botão para desligar. O texto, contudo, não retira do filme a capacidade de construir sentido, gerar uma atmosfera crível e descobrir o brilhantismo possível em meio aos mais irresolúveis conflitos.