quinta-feira, 24 de março de 2011

terça-feira, 1 de março de 2011

A face negra do homem no balé de Aronofsky

Attact it! Attack it! Por que, mesmo repleto de lugares-comuns, Cisne Negro é um dos filmes mais importantes da nova safra


Em Cisne Negro, Natalie Portman (foto) encena bailarina obrigada a encarar seu lado obscuro.


Um dos nomes mais emblemáticos das artes cênicas, Constantin Stanislavski propôs que interpretar um personagem exige recobrar experiências pessoais e memórias afetivas, empregando-as a favor do ato dramático. Os percursos do artista russo ecoam em Cisne Negro (2010), filme que certamente já figura no rol dos mais profícuos dos últimos tempos.

A questão que enseja a trama é: o que fazer quando o artista parece não ter um repertório de sentimentos suficiente para alcançar o tom adequado à sua "nova vida"? Thomas Leroy (Vincent Cassel), o diretor artístico de uma companhia de balé, decreta: é preciso criar - ou descobrir - monstros em casa e, então, levá-los ao palco com verossimilhança e intensidade.

A bailarina Nina Sayers (Natalie Portman) é dona de uma candura sem oscilações. Disciplinada, dedica seus esforços a provar que pode ser dona de movimentos perfeitos. A princípio, sua perseverança faz dela a escolha natural para protagonizar uma montagem transgressora de O Lago dos Cisnes. Nina tem a conduta angelical perfeita para interpretar Odette, a princesa transformada em ave por um mago. As qualidades técnicas da moça, porém, não são o bastante. Ela precisa provar que pode, também, afinar-se a Odille, o duplo mal, o cisne negro que rouba o lugar da encantada e a leva ao suicídio. Para encontrá-la, Nina precisa perder suas referências.

O filme de Darren Aronofsky explora signos já conhecidos do público. Aliás, chega a exaurí-los. É como se, inseguro demais para oferecer sua obra ao espectador, o cineasta apresenta, reforça e pôe à prova as nuances da protagonista. O roteiro, que se propõe a ares psicanalíticos, adota direcionamentos clichês e fáceis. A obstinação de Nina, os excessos de sua mãe, combinados com os intermináveis discursos de Thomas sobre a importância de uma postura ousada e longe do politicamente correto, acabam anunciando cedo demais o desfecho dessa história. Nesse ponto, Aronofsky não justifica a fama de cult e faz uma obra particularmente clássica.

Apesar dos lugares-comuns, Cisne Negro não é um filme qualquer. Pelo contrário, é um dos mais importantes da nova safra. Ao se estruturar na psicanálise, ainda que com algum primitivismo, a obra dá ao espectador leigo a chance de começar a compreender muito. Aqui, a alta comunicabilidade é, sim, uma vantagem. Muito embora a qualidade de um filme não possa ser medida por seu didatismo, esse é um ponto a favor do filme. Aronofsky pode ser chamado de pretensioso, mas parece dar as costas para o pedantismo da crítica especializada, orgulhosa em parecer blasé e ensimesmada. O resultado disso é um filme deslumbrante, mas feito para o público - com uma intensidade e inventividade visual a que poucos se arriscam no mainstream.

A experiência de ver Cisne Negro melhora (e muito!) quando Nina finalmente passa a enxergar seu duplo negro no espelho. Naquele momento, nós também a alcançamos, criando uma relação íntima com a personagem. Emerge o melhor do cinema clássico: o auto-ocultamento. Ali, desaparece a fronteira de uma lente. É como se a posição passiva do espectador se reconfigurasse por alguns momentos. Vemos, desejamos e reagimos como a bailarina. Ao confundir os limites entre real e imaginário, o suspense nos arranca o poder de julgar.

Diante da tela, embora não confessemos, também liberamos nosso cisne negro. Também matamos aqueles que se interpõem. Também descobrimos o poder que só o mal pode proporcionar. A ovação entusiástica é toda nossa. Jaz apenas a impossibilidade de equilibrar essas duas forças antagônicas, yin-e-yang, branco-e-negro, instinto-e-censura. Aronofsky é rigoroso. Impõe-se, imperativo e sem medo do ridículo, defendendo a todo custo uma séria jornada de auto-conhecimento. O que nem ele ou Freud sabem é onde iremos parar, nem se é possível cortar as asas de uma ave que provou o gosto da liberdade.