domingo, 7 de abril de 2013
Sobrevivendo até a morte
Aquela noite, descobriu o poder curador de um longo banho quente, aparentemente mais eficaz que um bom porre e mais ágil que intermináveis sessões de análise. Era como se, abraçado pela água, pudesse lavar toda a dor que pesava em seus ombros. O líquido corria generoso por seu corpo, oferecendo um calor que a humanidade – no momento reduzida a um único alguém – havia negado com tanta veemência. Assim, o roteiro de longa-metragem daria lugar a cenas curtas que, embora com tintas mais carregadas, decretariam fade out de vez. Ajoelhou-se diante do azulejo azul-céu-clarinho e, por instantes, deixou que sua matéria escorresse ralo abaixo. A água ajudava a desescrever as tatuagens que haviam lhe sujado. Eram cicatrizes. Iriam desaparecer. Uma hora ou outra. Talvez em dois dias. Talvez no século XXX. Ao menos teria uma história, pensou, para contar quando tentasse escrever seus personagens. Faria um esforço para continuar seguindo na vida, nem que isso lhe custasse a própria vida.
domingo, 3 de março de 2013
Goiás cubista
A terra da minha terra, quando vista acima da Terra, aparece como um quebra-cabeça. É um tapete de Picasso, em que o vermelho disputa com o amarelo e ambos disputam com o verde soberano da soja e da cana. Em suas artimanhas fronteiriças, a terra vai virando pó, o mesmo que os homens viram quando descem terra abaixo. Não se pode vê-los de tão alto, o que talvez seja uma justificativa plausível para que Alguém os tenha esquecido de vez. Por cima da Terra, nenhum amor se vê. Nenhum coração se planta na terra agrícola estendida sobre o cerrado.
sábado, 12 de janeiro de 2013
Mimese-pipoca
Era um garoto quando escrevi meu primeiro roteiro. Falava sobre um amor sádico, cheio de fúria e violência. O clímax acontecia quando uma jovem bailarina sofria um aborto espontâneo no palco e a plateia imaginava se tratar de parte do espetáculo. Ficou uma merda, como não poderia deixar de ser. Não se escreve sobre o que nunca se viveu (não me refiro à gravidez). Depois, tentei uma comédia de humor negro sobre um casal que cria as cinzas do filho como se aquilo ainda fosse uma pessoa de verdade. Entenda: sou filho único. Achei autobiográfico demais e parei na metade do texto, já tendo finalizado a última cena, que se passava na sala de jantar. Mas aquela nunca foi minha história, claro. Nunca comemos juntos à mesa. Por fim, veio um experimento livre com a câmera. Atrelado às imagens, um off insinuava um homem agonizando à beira de uma estrada e admitindo a fixação pela mãe. Logo eu, que admiro a psicanálise, mas cago para as interpretações que fazem do Complexo de Édipo. Meses depois, senti-me enojado daquilo e só não destruí as cópias por respeito aos colegas que participaram das filmagens. Da minha parte, decidi guardar cada narrativa, como quem guarda os sonhos - se fossem esquecidas ao amanhecer é porque não tinham tanto a dizer. Continuei escrevendo coisas, mas virei um contemporâneo. A princípio, as histórias só existem quando realmente não cabem mais em mim. De resto, são poesias. Um dia qualquer, talvez elas comecem a me possuir. Espero estar morto quando isso acontecer.
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