sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Se acaso você

As notas musicais se intensificam, deixando em altíssima tensão os pêlos e a tez úmida. A mocinha está diante de um corredor escuro e, ingênua e burra, burra, burra, vai de encontro à própria morte. Ainda que o assassino não esteja ali, ele virá pelas costas, pela esquerda e a surpreenderá inevitavelmente. Sai daí, porra e, na fronte, a primeira gota de suor vai caindo, lenta como o acorde grave que prenuncia o choque emocional. Ironicamente, toda a preparação para o momento de conflito é nada. Um grito agudo rasga a sala ao meio e fim: você é o eliminado do Big Brother Brasil dessa noite, a faculdade acabou, seus pais partiram, seu corpo nunca mais será o mesmo, amores não duram pra sempre, todo carnaval tem seu fim, ponto.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Absorto


Sentiu a mesma pontada que usualmente indicava o prelúdio de um equívoco. A hora de retroceder, porém, havia passado há exatos dois meses, cinco dias, três semanas, oito segundos, sete anos e três-quartos de hora. Enquanto seu coração ardia em selvageria bruta, o homem de turbante seguia o protocolo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O ronron do gatinho

Minha filhota, Brigitte, em foto da amiga Aline Caetano
O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pêlo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.
 
Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.
 
É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso faz ronron
para mostrar gratidão.
 
No passado se dizia
que esse ronron tão doce
era causa de alergia
pra quem sofria de tosse.
 
Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ronron em seu peito
não é doença - é carinho.

Ferreira Gullar

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

sexta-feira, 30 de julho de 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Sal amargo

Era dia quando, em um golpe silencioso, num instante tão instante como qualquer outro
O homem, tão homem como qualquer outro
Esquece as cores, os livros, os formatos
E passa a ver tudo em um branco absoluto, ora quente, ora frio, ora áspero, macio
Mas, sobretudo, branco

"Ajuda-me, estou cego"
Ou ainda "Filho de Davi, tem misericórdia de mim"
Os cegos, tão cegos como quaisquer cegos, mas, sobretudo, cegos que enxergam tudo em um branco absoluto, logo perderiam, além da visão, as poucas virtudes, o orgulho, o brio.

O que se via, mesmo sem se ver, era a fadiga, o cansaço em reinventar a civilização sob outras condições - o disparate da vida.

Sem homens para operar as máquinas que antes, dizem, operavam-se sozinhas
Sem olhos para vigiar a corrida cotidiana que antes, assim também o dizem, organizava-se por si
Sem muito daquilo que outrora o diferenciava dos outros animais
Padecia o homem.

"De que me servem os óculos escuros?", perguntou-se a moça sozinha
"Por que a venda?", latejava nos lábios do velho, conhecido pelo rádio de pilhas e o acessório que lhe tampava um olho defeituoso da vista dos demais
"Que valor tem todo o conhecimento que acumulei durante esses anos?", errava a voz do médico
"Quem sou eu, que tipo de aberração, anjo ou demônio, quando a humanidade, já cega, caminha?", gemia a única criatura cuja visão permanecia intacta

O homem continuava a padecer.
O nojo, o pudor e as regras de outrora
Só o que restava era a fome
A inegável fome que só se debatia nos estômagos vazios, como se dilacerasse o homem por dentro

terça-feira, 15 de junho de 2010

Brigitte

Nem esperou para ficar crescidinha e já aprendeu que roçar em pernas era o bastante para conseguir um lugar melhor para viver. Deu um miau tímido dizendo adeus à velha cidade.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Lacrimosa

Um homem soturno suspira. No fundo, sabe que abaixar-se para colher aqueles lírios será fatal. Seus poros, contudo, choram pela certeza de que ele morreria oito mil vezes por aquela sensação.


quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ação



Quando mandaram parar, atropelou dois tripés e um visor. Tomou dois goles de água e partiu para a próxima cena. Sonhou com um filme para chamar de seu.

sábado, 22 de maio de 2010

Tenho até medo de te conhecer

Prendeu o cabelo cacheado, o botão da sandália e a respiração, que teimava em ofegar. Vai acabar logo, dissimulou. Ardeu, entrou. Como se não houvesse amanhã, esperou pela felicidade que chegaria. Nem o teto de zinco resplandecia mais que seus olhinhos. Boa noite, e ela foi cruzando a porta que ele deixou aberta ao sair.

domingo, 18 de abril de 2010

quarta-feira, 31 de março de 2010

Gainsbourg onírica

- Moça, rápido! Preciso de uma beca... A formatura já está começando.
- Pois bem. Qual seu tamanho?
- Não interessa. Olha lá, eles já estão entrando!
- Tudo bem. Tome esta!
- Quanto custa?
- São 42 reais.
- 42? Tem um livro que diz que 42 é o grande segredo da vida.
- Como?
- Deixa pra lá. Tome 100. Pego o troco com você depois.

Esse foi meu último diálogo com a atriz Charlotte Gainsbourg (Anticristo), que em um sonho meu se transformava em vendedora de becas. No fim do sonho, vi que todos estavam de verde. A minha roupa, porém, era de um amarelo que reluzia, reluzia...

terça-feira, 9 de março de 2010

Sem sair da linha



Na correria, sempre. Era como o ambulante Alisson respondia aos rotineiros cumprimentos dos transeuntes que passavam pela avenida. Na correria, lidava com as também cotidianas e pouco pacíficas abordagem de fiscais do município, que, dizia, às vezes decidiam dar presente pra família inteira e tomavam a mercadoria dos camelôs honestos. Dessa vez, sua velocidade não havia sido suficiente. Violação de direitos autorais, tudo em flagrante, recolhido e documentado.

Subemprego era uma saída imprópria, mas necessária. De procedimento conciso e emoções ligeiras, não tinha tempo de analisar a própria conduta. Nas poucas tentativas, a pensão alimentícia de suas duas crianças começou a atrasar. Portanto, entre o risco de ser preso por não sustentar os filhos e o de ser preso tentando, escolheu a segunda opção. De segunda a sábado, ele berrava a tabela de preços de CDs e DVDs. Não gostava de filmes. A visão apenas parcial impedia uma concentração maior em histórias demasiadamente ausentes de sua realidade. Quanto a isso, era intransigente: ficção era pra gente rica.

Em suas orações dominicais, Cassandra, a empresária, clamava por misericórdia ao Senhor, para que nunca lhe faltasse pão e proteção divina. Em seu megaempreendimento, o movimento de pessoas de todas as formas, pesos e cores, dava-se sem grandes tumultos. Distintas senhoras desfilavam suas elegantes echarpes e afeição pela vida. Naquela tarde, algumas delas, em vão, torceram o nariz para a entrada em massa de policiais federais na butique. Em alguns minutos, todos os funcionários estavam dispostos em fila para apresentação de documentos pessoais e a assinatura de um acordo de cooperação. O temperamento explosivo de Cassandra com subalternos garantiu à polícia uma colaboração um pouco mais estreita. Em poucos dias, o relatório estava pronto. Seis descaminhos consumados, três descaminhos tentados e nove falsidades ideológicas, além de formação de quadrilha. Aguardava em liberdade o término do processo.

Em sua longínqua parte de país, enquanto aguardava julgamento de recurso, Alisson prosseguia em sua rotina de trabalho. Não fazia qualquer menção ao caso da milionária golpista, embora a situação, ridícula como fosse, inquietasse-lhe a alma. Precisava de pouco para ser feliz, sim. Talvez fosse mais feliz com um pouco mais. Talvez, não: certamente, concluiu. Com o tempo, foi travando uma relação íntima com a mulher que rendia tantas manchetes aos noticiários do país. Queria explicar aquilo, não por se compadecer da iminente condenação daquela, mas por temer que, em um futuro não muito distante, comparassem a sua atividade à dela. Era diferente. Gritantemente diferente, sabia. Só se perdia na justificativa. Dizer que um precisava e outro não, era simplório demais.

Na manhã em que ambas as sentenças foram dadas, ela se despediu da porcelana húngara, dos quadros do século XVIII, e deu ordens expressas para que suas almofadas exclusivas fossem lavadas a seco. Sabia o que a esperava. A mesma intuição feminina que havia falhado quando pensou nunca ser pega agora dava sinais de eficiência. Quase um século inteiro em regime fechado era a soma das condenações. Saiu do tribunal austera como de costume. A garganta engoliu em seco. Seus advogados teriam agora a missão de criar mais uma instância no processo.

Ele havia deixado de abrir a banca para comparecer à Câmara Criminal. Diferente dela, não tinha ideia daquilo que o esperava. Ouviu um longo discurso sobre lesão de direitos, ponderações sobre auto-sobrevivência e licitude. Sabia que se dissessem “apelante” significava que estavam falando dele e que, se mencionassem o termo “estado de absoluta necessidade”, estaria mais perto da absolvição. Assim, ocorreu. Riu-se da situação quando soube que a madame iria para a reclusão. Contou a própria anedota para todos os conhecidos, acrescentando a história alheia à sua narrativa, como se a nova presidiária tivesse conhecimento do que se passara com o camelô e estivesse revoltada por ele estar livre. Justiça nesse país está começando a se tornar verdade, discursou. Alguém lembrou que, mesmo na remota possibilidade de cumprir a pena inteira em regime fechado, ela teria uma vida de mordomias que ele jamais alcançaria com suas mídias piratas. Só então se dera conta. No fundo, ele era um cidadão conformado com as mazelas do mundo. Mas, na superfície, uma revolução nascia sobre si.

(Crônica publicada originalmente no Jornal Samambaia/UFG)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Não fale em despedidas, Patrícia (ou Um Bilhete em Pedaços)



Ela não sabe, nem poderia. Eu mesmo acabei me esquecendo, e o fato seria enviado, sem bilhete de volta, ao lugar que chamam mar do esquecimento. Mas, então, suas palavras me chegam de súbito, não como um tapa, mas como uma brisa em uma noite de calor. Vejo-me em seu escritório, um lugar de passagem - felizmente, apenas no sentido físico, pois o lugar é quem o faz e ela é e um dos seres humanos menos passageiros que já conheci. Alguém chama e a demanda o atendimento a uma solicitação que, quis a ventura, só ela é capaz de cumprí-la. E lá vai, pedindo que eu esperasse rapidinho, por só cinco minutinhos, que já estava voltando. Como se estivesse esperando apenas o meu silêncio para irromper, o fantasma da despedida soma uma lágrima em meus olhos.

Se eu deixá-la agora mesmo, penso, evito uma dor iminente. Enquanto uns passam correndo, certamente sem se dar conta do aperto em meu peito, pego um bloco de papel e começo a ensaiar uma despedida sem resposta, mais saudável para todos e talvez mais expressiva do que meus abraços desajeitados:

Patrícia,
Nós não vamos parar por aqui. Para evitar qualquer dissidência entre nós, combinemos de imaginar (com força, é preciso acreditar na brincadeira!) que apenas fui transferido para um lugar na próxima esquina. Sei que você não tem vista para a rua, mas às vezes te acenarei de lá. Não é longe. São apenas alguns metros e os benefícios são muitos: como se trata de um prédio de esquina, meu ângulo visual praticamente dobra; terei uma janela só pra mim e não precisarei ouvir as constantes queixas da vizinha de porta sobre o volume da minha voz - ela costuma falar ainda mais alto, mas é incapaz de perceber a própria estridência. Estranho, não? Mesmo assim...

Seus cinco minutos acabam antes que eu finalize o bilhete. Com as mesmas mãos que escrevia, rasgava-o e atirava na lixeira. Não me lembro bem dos momentos seguintes, só sei que quando a hora chegou meus dedos grandes não conseguiram declarar a mesma singeleza que deveriam. Assim como o resto do corpo, já sentiam falta daquilo que sequer chegou a existir, como assuntos perdidos, aos  quais chegávamos sem coerência alguma e dos quais nos livrávamos instantaneamente, graças a nossa velocidade de raciocínio. Os dedos acompanharam quando o corpo decidiu levantar-se e dizer "obrigado por tudo, Patrícia" - como se fosse preciso fazê-lo.

Cruzava a porta de vidro, andar após andar, querendo me arrepender do último abraço e debandar das próximas despedias. Nesse dia, ainda havia sol quando atravessei a rua na direção do meu "novo escritório de esquina". Os maiores raios vinham, estranhamente, da antiga casa e tenho a impressão de que isso foi um prenúncio.
-

Não vou agradecer a Deus por você, não é hora. Não deseje-me sucesso na carreira, saúde para a família, casa bonita e boa mesa, porque isso é característico de um adeus. E, não, não venha me expulsar da sua vida com esse carinho todo. Trate-me com a casualidade fugaz de um mero partidário e, no íntimo, me ame como sempre nos amamos. Nossa felicidade é assim como nós: sem nenhuma compostura clássica e nada definitiva.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Violência em monocromia

A FITA BRANCA (Haneke, 2009) -
Mais que fruto de uma inspiração diabólica, a brutalidade é gerada, antes de tudo, através da submissão à truculência alheia. É desta visão que Michael Haneke bebe em seu filme Das Weisse Band (A Fita Branca). Dirigido sensivelmente pelo austríaco, o filme retrata as tensas condutas familiares como elemento fundamental para o estabelecimento de opressões maiores - nesse caso, o nazismo e todos os procedimentos decorrentes dele.

A fita branca do título representa, nas palavras do pastor local, uma evocação à pureza. O religioso ata tiras brancas em dois filhos para que, ao ficarem à beira do pecado, lembrem-se dos valores com que severamente os doutrinou. Aos menores desvios (leia-se: andar pelo vilarejo sem autorização, masturbar-se ou fazer algazarra em sala de aula), são castigados. Logo, a fita acaba assumindo um caráter cada vez mais obscuro. A opção pelo preto-e-branco serve, aliás, de metáfora para a contraposição de pesos e medidas, além de dar qualidade poética ao filme.

Edição crua, cenas longas e tensas, ausência de trilha sonora e atuações infantis impressionantes dão textura ao filme, narrado pelo professor do vilarejo. O homem passa longe de ser o protagonista da história, já que vive feliz e ignorante à revelia do que acontece ao redor. A escolha do narrador, porém, permite maior identificação com o espectador, em virtude de sua isenção nos fatos. Como nós, ele tem, a princípio, grande dificuldade em elaborar a sutileza dos ataques que ocorrem pouco a pouco. Vale ver e rever!

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O cotidiano brutal em Preciosa



Um diamante tem sempre seu valor. No filme Preciosa (Lee Daniels, 2009), ele tem 17 anos, pesa 150 kg, é negro, pobre, espera o segundo filho, fruto dos abusos que sofreu do pai, e atende pelo nome de Claireece Precious Jones. Como se tragédia pouca fosse bobagem, Precious vive com a mãe, uma mulher cuja propensão à violência fica evidenciada pela constante tortura psicológica à qual submete a filha. A situação ainda seria passível de reviravolta não fosse o diagnóstico: a garota, que nunca tivera namorado, contraíra do pai o vírus da AIDS.

Até este ponto, o drama deve parecer ao leitor um grande imbróglio de situações deprimentes, que inviabilizariam quaisquer possibilidades poéticas. Não é isso, porém que Preciosa, oferecerá ao seu espectador. O estreante Lee Daniels tem uma deslumbrante elucidação visual e dramática do enredo - bem maior do que este blogueiro e sua sinopse. A cada baque, Precious dá a impressão de estar anestesiada, não por obstinação, mas pela mera capacidade de se adaptar à realidade que se impõe sem pedir licença. Ainda assim, existe espaço para memoráveis momentos de respiração no roteiro, e precedentes para um (pasmem!) final feliz - feliz, mas não mirabolante e inverossímil. Reviravolta, sim.

O gosto de deja vú em Preciosa não é fruto do acaso. Quem já assistiu ao sensível A Cor Púrpura (Spielberg, 1985), reconhecerá ali a mesma tríade racismo-abuso-solidão. A referência, entretanto, é apenas inicial, já que o filme busca novas perspectivas de um problema antigo. Uma das grandes razões para assistir ao filme é a interpretação visceral da desconhecida Mo'nique, no papel da mãe de Precious. A tensão vai ao limite na cena em que, durante uma reunião com a assistente social, a personagem se vê obrigada a explicar a razão dos maus tratos - e, invariavelmente, reconhece a tortura a ela imputada também.

É preciso levar em conta que a emoção do filme fica, vez ou outra, comprometida pelos excessos do texto. Em dado momento, Precious insiste em ilustrar a própria depressão: - Às vezes eu desejo que não estivesse viva. Mas eu não sei como morrer. Não há nenhum botão para desligar. O texto, contudo, não retira do filme a capacidade de construir sentido, gerar uma atmosfera crível e descobrir o brilhantismo possível em meio aos mais irresolúveis conflitos.